terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carlos

Ele contou:
‘Notei algo diferente nela há tempos. Era estranho, sabe? Ela nunca comia, sempre colocava a comida dela e ela deixava no prato. Não me ajudava mais nos serviços de casa, não era muito de falar também na presença de outra pessoa que não fosse eu. Às vezes, pedia sua ajuda em algo e ela simplesmente me ignorava. Deixava pra lá, afinal, sabia que aquele estanho comportamento poderia ser resultado de algum trauma sofrido naquele acidente. Desde aquela época ela parece outra pessoa, sabe? Como se estivesse em outro mundo. Fica sempre ao meu lado, me faz companhia em tudo. Alias, devo muito a ela! Se não fosse nosso amor e ela ao meu lado, não sei o que seria da minha vida. Estou aposentado, meus filhos já estão grandes e formados. Se ela realmente tivesse morrido naquela batida como aquele médico incompetente havia me informado, meu coração teria morrido junto com ela. Mas não, ela logo se curou e antes de mim até. Ficava comigo no meu quarto enquanto eu estava de cama. Na verdade, ela nem podia ficar lá, mas sempre dava um jeito e quando a enfermeira entrava, ela se escondia! Ninguém nem viu ela no hospital depois que ela melhorou, mas é porque ela ficava comigo e sempre teve cuidado pra não ser pega.
Sabe, não sei nem o que estou fazendo aqui. Só decidi vir porque nosso filho, Pedro, insistiu. Ele disse que me faria bem, mas acho que seria melhor se minha esposa viesse. Mas se ele me mandou vir, eu devo ter algo. O que você acha, doutor?’
Deixei de lado minha ética profissional. Não tinha o direito de tirar aquela realidade de sua cabeça. Então, respondi:
‘Eu acho, Carlos, que o amor ultrapassa os limites da vida. Volte para casa, sua esposa te espera lá fora.’
Ao sair da sala, Carlos fez um gesto no ar como se estivesse a acariciar o cabelo de uma mulher e a beijar sua testa. Consegui ler seus lábios e ele dizia:
‘Eu te amo. Está tudo bem agora, vamos embora.’
Fechei a porta do consultório e, emocionado, chorei.

Nenhum comentário: